31 de agosto de 2010

Semana do neversário: segunda-feira



 Luiz Fernando Veríssimo
"Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo".

30 de agosto de 2010

Primavera Negra (1936)

Assim Robinson Crusoé não só encontrou um meio de tocar a vida, mas conseguiu até mesmo para si próprio uma felicidade relativa! Bravo! Um homem que se contenta com uma felicidade relativa. Portanto, não-anglo-saxão! Portanto, pré-Cristão! Atualizando a história, fazendo o contrário de Larousse, temos aí, portanto o relato de um artista que desejava construir um mundo para si próprio, a história do que talvez tenha sido o primeiro neurótico genuíno, um homem que naufragou a fim de viver fora de seu tempo em um mundo próprio que pôde partilhar com outro ser humano, même um sauvage. A coisa notável a observar é que, executando seu impulso neurótico, ele encontrou uma felicidade relativa mesmo sozinho em uma ilha deserta, sem nada mais talvez que uma velha espingarda e uma calça rasgada. (...) Uma concepção de felicidade relativa do século XVIII! E quando chega Sexta-feira, embora Sexta-feira ou Vendredi seja apenas um selvagem e não fale a língua de Crusoé, completa-se o círculo. (...) Um quadro da realidade do século XVIII. Daí para diante, nada mais de ilhas desertas. Daí para diante onde quer que a gente nasça é uma ilha deserta. Cada homem com sua própria ilha deserta, a ilha do eu em que ele está naufragado: felicidade, relativa ou absoluta, está fora de cogitação. Daí para adiante, todos estão fugindo de si próprios para encontrar uma imaginária ilha deserta, para viver este sonho de Robison Crusoé. Acompanhem as fugas clássicas de Melville, Rimbaud, Gauguin, Jack London, Henry James, D.H. Lawrence... milhares deles. Nenhum deles encontrou felicidade. (...) A Peste! A Peste do progresso moderno: colonização, comércio, Bíblias gratuitas, guerra, doença, membros artificiais, fábricas, escravos, insanidades, neuroses, psicoses, câncer, sífilis, tuberculose, anemia greves, lockouts, fome, nulidade, vacuidade, inquietação, esforço, desespero, tédio, suicídio, falência, arteriosclerose, megalomania, esquizofrenia, hérnia, cocaína, acido prússico, bombas de mau cheiro, gás lacrimogêneo, cachorros loucos, auto-sugestão, auto-intoxicação, psicoterapia, hidroterapia, massagens elétricas, aspiradores de pó, carne seca, hemorróidas, gangrena. Nada de ilhas desertas. Nada de paraíso. Nem mesmo felicidade relativa. Homens fugindo de si próprios tão freneticamente que procuram salvação embaixo dos campos de gelo ou em pântanos tropicais, ou então escalam os Himalaias ou se asfixiam na estratosfera...

O que fascinava os homens do século XVIII era a visão do fim. Eles tinham o suficiente. Desejavam voltar sobre seus passos, subir de novo para dentro do útero.



ISTO É UMA ADENDA AO LAROUSSE...



(...) A história de Robinson Crusoé deve sua atração – pelo menos para mim – ao momento em que a descobri. Vive em uma crescente fantasmagoria, uma parte viva cheia de fantasmagoria.(...)

Nada mais de olhar por buracos de fechadura! Nada mais de masturbar-se no escuro! Nada mais de confissões publicas! Desparafusem as portas de seus batentes! Quero um mundo onde a vagina seja representada por uma racha simples e honesta, um mundo que tenha sensibilidade pra osso e contorno, para cores toscas e primarias, um mundo que tenha medo e respeito por suas origens animais. Estou enjoado de olhar bocetas todo excitadas, disfarçadas, deformadas, idealizadas. (...) Quero hermafroditas que sejam verdadeiros hermafroditas e não farsantes andando por aí com um pênis atrofiado ou uma boceta ressecada. Quero uma pureza clássica, onde bosta seja bosta e anjos sejam anjos. (...)

(...) O que os papas murmuravam por trás de suas barbas é uma coisa – coisa diferente é o que mandaram pintar em suas paredes. As palavras estão mortas.

Semana do neversário: domingo.

Não saí no sábado e nem tenho mais aquela coisa de viver para esperar o fim de semana. Acho que isso é o peso dos trinta e cinco chegando. Trabalhei o sábado todo em projetos com a minha sócia. Depois, terminei o dia com três latinhas de cerveja, um único cigarrinho e aulas de xadrez no computador. Pois é. Acho que virei coroa mesmo! Então domingo começou a semana do neversário. Acordei às dez e todo mundo dormia aqui em casa. Fiz meu canecão de café e fui olhar pela janela. Do outro lado do córrego que passa na minha rua, um monte de gente mal vestida com crepe de seda celebrava um casamento no cartório. Estranho pra caramba! Voltei pra cama e fui dormir mais sem grandes expectativas.

Acordei duas horas depois com a Paty (Santa!) me acordando com uma latinha de cerveja. O namorado dela dormiu aqui em casa e fez um delicioso strogonofe de carne. É isso aí: comida de domingo em família com direito a discussão política na mesa. Calma, só durou um minuto e por causa da TPM. Fico implicante, confesso. Mas consegui me segurar. O que eu queria dizer é que essa filosofia de DCE é muito over e imatura. Não falei. Pois não quero ser uma coroa ranzinza.

Senti um treco estranho, como se tivesse num dia do século XX e fiquei hiper entediada, quase náuseas caíram feito uma bigorna na minha cabeça. Então recebi um convite irrecusável: ajudar a Paty se desapegar de certas “coisas” no guarda-roupa dela. Conclusão: meu guarda-roupa de verão está completo. E mais: várias fantasias de psicóloga. Ia terminar o dia na certeza que ele foi um porre. Mas é preciso ler os sinais. Por exemplo: encontramos um maço de Carlton cheinho durante a faxina. Eu disse CARLTON, e não Dunhill.

Isso é mágica!

Juntamos em poucas horas uma pilha de coisas pra jogar fora e doar. Depois, assistimos muito interessadas uma reportagem de ataques de animais a seres humanos. O do urso foi o mais legal. Parece que comeu metade da cabeça do cara que ainda sobreviveu para contar a história. Daí fui dar uma faxina na cozinha enquanto Paty quase se derreteu de rir com o Silvio Santos. Quando me dei conta já era meia noite e ATÉ meu all star eu lavei (RARIDADE). Tomei um banho delicioso, me besuntei de cremes, vesti meu pijama preferido (rasgado no meio das pernas) e esperei enroladinha no edredom a vida dar seu intervalo diário. Diferente de todos os outros dias o silêncio da madrugada fazia um chiado de vinil.

Não quis escutar música.

Dormi e não sonhei.

26 de agosto de 2010

Fazendo um bico nas ruas... "New York Herald Tribune!"




em@il

*Achei fofo este email leviano que não resisti e mandei ontem à noite... Então trouxe para Paris...

Estou praticando xadrez no computador... Confesso que tem horas que penso ter uma ótima cavalaria... Outras, acho que me confundo com cavalos. Não consigo deixar de cometer o erro de prender a minha dama e uso mal o meu bispo. Os peões me irritam e tem horas que penso que deveria haver uma hierarquia na hora das mortes. As torres? Sempre esqueço. Mas estou confiante que desenvolverei minha inteligência... rsrsrs. Te vi hoje e, agora jogando, me deu vontade de te contar. Tiau!




Tiau!

23 de agosto de 2010

Práticas de solidão


Penso que toda vez que encontramos uma pessoa especial, no sentido de debaixo dos cobertores, precisamos levá-la à nossa Paris Imaginária. A experiência me ensinou, contudo, tomar o cuidado para não deixar o outro em questão se apaixonar por esse cantinho, mas ensiná-lo a usar bem o Green Card. Porque ele só deve se apaixonar pelo que você é e não pelo que você deseja e sonha. E, quando chegar aquela hora de dizer um adeus mais definitivo, ou colocar um ponto final, você deve tomar uma coisa dele.

No entanto, essa coisa tem que ser do tipo que não se esgota, que não esteja na ordem do põe-e-tira, não pode ser necessariamente um roubo. Mas algo que começa a se repetir em você tornando-o alguém melhor. É um truque idiota e você vai encontrar livros de auto-ajuda insistindo na aceitação de perdas. Só que apenas se acostumar é complicado demais! Lacan dizia que toda verdade tem uma estrutura de ficção. Então foda-se o mais profundo eu interior. Escolha as pessoas considerando seu coeficiente de surpresas. Tenho vivido melhor assim.

Meu último affair deixou muitos trecos aqui na Minha Paris Imaginária. Coisas que vão da apreciação de Lupicínio Rodrigues ao prazer de jogar xadrez. Tá certo, o tempo foi cruel conosco quando percebeu a intensidade que a coisa toda ia... De forma que o xadrez só ficou na primeira lição. Então, agora que meu amante se foi eu decidi aprender, por conta própria, ser uma campeã de xadrez. [Cof. cof.] Só continuem esse texto se prometerem não fazer julgamentos...

Além de precioso Fitness Mental, eu fico escutando meu Jazzuela, transformo o jogador programado no computador (categoria iniciante) numa espécie de ente daquele que se foi e fico tentando vencê-lo. Assim evito chorar, evito pensar que eternidade não é condição de verdade e que contos de fadas são um saco. Em suma, além de Fitness Mental, faço Fitness Emocional e, quando menos espero, acordo, numa segunda-feira como essa, feito gente grande que acaba de nascer. Só falta uma deliciosa taça de vinho... E daí lembro que também falta dinheiro... Mas, daí sigo o mantra: despreocupa-se e pensa no essencial...

Aqui música é alimento!



Por que a gente gosta de cantores? Onde se esconde o poder das canções? Talvez se origine da mera estranheza de se existir canto no mundo. A nota, a escala, o acorde; melodias, harmonias, arranjos, sinfonias, ragas, óperas chinesas, jazz, blues: o fato de essas coisas existirem, de termos descoberto os intervalos mágicos e as distâncias que produzem o pobre punhado de notas, todas ao alcance da mão humana, com as quais construímos nossas catedrais sonoras, é um mistério tão alquímico quanto a matemática, ou o vinho, ou o amor. Talvez os pássaros tenham nos ensinado. Talvez não. Talvez sejamos, simplesmente, criaturas em busca de exaltação. Coisa que não temos muito. Nossas vidas não são o que merecemos. De muitas dolorosas maneiras elas são, temos de admitir, deficientes. A música as transforma em outra coisa. A música nos mostra um mundo que merece os nossos anseios, ela nos mostra como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo”.


*Trecho do livro “O Chão Que Ela Pisa”, de Salman Rushdie

Foto: Serge Gainsbourg

Mais em: http://obviousmag.org/archives/2009/08/qual_a_musica_que_te_define.html#ixzz0xSF2ZRnO

16 de agosto de 2010

Aqui os encontros são assim

Encontraria a Maga? Tantas vezes bastara-me chegar, vindo pela Rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio me deixava entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentrifícia.




O Jogo da Amarelinha, primeiras palavras.

7 de agosto de 2010

Minha Paris Imaginária

Se não há uma forma correta, então não há como dizer o que é errado. E tenho dito por aí que a expressão que muito uso, Paris Imaginária, vem de Campos de Carvalho, em sua estreia no surrealismo com A Lua Vem da Ásia. Logo no início desse livro, também um convite às delícias do surto, ele fala dela. Ou melhor, DELE… Ou muito melhor, dos dois. O que?

Antes de deixar a par os desavisados, uma advertência:

Tout homme peut bafouer la cruauté et la stupidité de l`univers en faisant de sa vie propre un poème d`incoherence et d`absurdié. [Gabriel Brunet]

Meu parco francês de seis meses de Alliance Française (+dicionário) permitiu-me captar esta mensagem assim: Todo homem pode zombar da crueldade e estupidez do universo com o intuito de fazer da sua vida um poema de incoerência e absurdo. Certo? Por favor, melhor não responder para não perdemos tempo com julgamentos. Então vamos em frente.

Tá logo no início do livro:

Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.

Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.

As pessoas ficam sem graça quando eu falo que minha Paris Imaginária vem de Campos de Carvalho. Pois logo se vê que o pronome masculino passa da cidade, onde o Sena escorrega, para o coração de um personagem mitológico grego. Ora! Entendo, para resumir minhas conclusões, que Paris aqui é um estado de espírito, um arquétipo, um personagem assumido pelo personagem, ninguém confesso, de tanto ser todos para livre ser. Logo, quando falo que estou na minha Paris Imaginária é porque estou brincando (e devo frisar, a sério!) de ser Henry, Anäis, June, Horácio, Maga, Sr., Sra. ou filha (adoro Nadine!) Dubreuilh, Paule, Scriassine, Jeff, Celine, Odile, Franz, Arthur, Amelie, Matthew, Theo, Isabelle e uns tantos mais que vi e li. Tão queridos, tão fantásticos, que de alguma forma resolvi libertá-los de suas respectivas páginas ou telas. Afinal, foram criados para não terminarem no final de uma página ou fita. Eles são pílulas de eternizar detalhes!

Para quem não se liga em mitologia, revelo que Paris é conhecido pelo famoso julgamento que representa, de forma arquetípica, a questão da escolha amorosa. Por extensão, remete à escolha do tipo de pessoa que desejamos ser. Eu sei, fazemos isso a todo o momento. Mas o mito em questão nos fala do momento original desta escolha. O primeiro desafio de nossas vidas, naquele momento em que somos mais desejo do que somos. Uma espécie de batismo de fogo. Só que, para uma vida mais intensa penso que a gente deve estar sempre disposto a renascer enquanto puder respirar. E daí escolhi criar minha Paris imaginária para realizar meus batismos.

No caso de Páris, ele escolhe Afrodite ao invés de Hera ou Atenas e detona a Guerra de Tróia. Então vamos julgar o julgamento de Paris? Claro que não. Se o amor não justificar uma guerra o que melhor justificaria? Então louvaremos a escolha de Paris? Não é para tanto. Muitas vidas se perderam. De forma que, neste mundo não há lugar seguro. Para apaziguar os corações só mesmo a beleza dos versos de uma Ilíada ou o impacto do seu corpo a 100 km/h no muro. Num impasse desses, o preferível é fugir para Paris Imaginária, donde se retorna, por mais absurdo que pareça, com alguma resposta secreta.