Introdução

Se não há uma forma correta, então não há como dizer o que é errado. E tenho dito por aí que a expressão que muito uso, Paris Imaginária, vem de Campos de Carvalho, em sua estreia no surrealismo com A Lua Vem da Ásia. Logo no início desse livro, também um convite às delícias do surto, ele fala dela. Ou melhor, DELE… Ou muito melhor, dos dois. O que?
Antes de deixar a par os desavisados, uma advertência:
Tout homme peut bafouer la cruauté et la stupidité de l`univers en faisant de sa vie propre un poème d`incoherence et d`absurdié. [Gabriel Brunet]

Tá logo no início do livro:

Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.
Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.


As pessoas ficam sem graça quando eu falo que minha Paris Imaginária vem de Campos de Carvalho. Pois logo se vê que o pronome masculino passa da cidade, onde o Sena escorrega, para o coração de um personagem mitológico grego. Ora! Entendo, para resumir minhas conclusões, que Paris aqui é um estado de espírito, um arquétipo, um personagem assumido pelo personagem, ninguém confesso, de tanto ser todos para livre ser. Logo, quando falo que estou na minha Paris Imaginária é porque estou brincando (e devo frisar, a sério!) de ser Henry, Anäis, June, Horácio, Maga, Sr., Sra. ou filha (adoro Nadine!) Dubreuilh, Paule, Scriassine, Jeff, Celine, Odile, Franz, Arthur, Amelie, Matthew, Theo, Isabelle e uns tantos mais que vi e li. Tão queridos, tão fantásticos, que de alguma forma resolvi libertá-los de suas respectivas páginas ou telas. Afinal, foram criados para não terminarem no final de uma página ou fita. Eles são pílulas de eternizar detalhes!

Para quem não se liga em mitologia, revelo que Paris é conhecido pelo famoso julgamento que representa, de forma arquetípica, a questão da escolha amorosa. Por extensão, remete à escolha do tipo de pessoa que desejamos ser. Eu sei, fazemos isso a todo o momento. Mas o mito em questão nos fala do momento original desta escolha. O primeiro desafio de nossas vidas, naquele momento em que somos mais desejo do que somos. Uma espécie de batismo de fogo. Só que, para uma vida mais intensa penso que a gente deve estar sempre disposto a renascer enquanto puder respirar. E daí escolhi criar minha Paris imaginária para realizar meus batismos.

No caso de Páris, ele escolhe Afrodite ao invés de Hera ou Atenas e detona a Guerra de Tróia. Então vamos julgar o julgamento de Paris? Claro que não. Se o amor não justificar uma guerra o que melhor justificaria? Então louvaremos a escolha de Paris? Não é para tanto. Muitas vidas se perderam. De forma que, neste mundo não há lugar seguro. Para apaziguar os corações só mesmo a beleza dos versos de uma Ilíada ou o impacto do seu corpo a 100 km/h no muro. Num impasse desses, o preferível é fugir para Paris Imaginária, donde se retorna, por mais absurdo que pareça, com alguma resposta secreta.
Meu parco francês de seis meses de Alliance Française (+dicionário) permitiu-me captar esta mensagem  assim: Todo homem pode zombar da crueldade e estupidez do universo com o intuito de fazer da sua vida um poema de incoerência e absurdo. Certo? Por favor, melhor não responder para não perdemos tempo com julgamentos. Então vamos em frente.