Lua em gêmeos, noite bem dormida em dias, e o encontro com Rimbaud antes do meio dia. Eu sei, é improvável que fosse este demônio desencarnado. Ele não poderia aparecer antes da segunda parte do dia. No entanto, ele não dorme, não descansa e me aparece como um fantasma na tela do computador através de uma reportagem de Kelly de Souza. Agora, passemos das palavras ao fato:
Rimbaud chegou junto com o telefonema de Paulinha, nossa embaixadora na França de Sarkozy. Interrompi a leitura de um para falar com outro. Além de me contar que computadores de jornalistas estavam “misteriosamente” sendo roubados de forma sistemática, ela também, ao relatar uma história de amor de um casal inusitado, me contou dos punks que anda conhecendo por lá. Disse que eles vivem em caminhões super equipados de toda sorte de substâncias e elementos para uma rotina hedonista com horas vagas para manifestações de toda espécie. Primeiro, pensei em forças sinistras atuando enquanto um bando de macacos corria atrás do próprio rabo em busca da ideologia perdida. Mas depois vi que era muito mais que isso. Me pareceu que o espírito de Rimbaud ainda está diluído nestes jovens franceses descritos por Paulinha.
Eu só havia lido Rimbaud há muitos anos por causa de um pedantismo adolescente fundamentado numa citação na música do Legião Urbana: Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, de Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud. E, agora, depois de ler um resumo da sua biografia, percebo como ele antecipou há dois séculos atrás a experiência dessa primeira década vivenciada por nós. O melhor adjetivo que a reportagem traz é realmente a palavra “indestrutível”.
O que mais me impressionou nos detalhes de sua biografia, que eu desconhecia (logo, eu não sabia nada de Rimbaud), foi a sua precocidade, traduzida por mim como uma ferocidade para vida. Uma espécie de urgência, fome, própria de um espírito selvagem com uma dose incomum, para época, de individualismo.
Rimbaud era um ótimo aluno! Tirava as melhores notas e dominava com fluência as línguas antigas. Segundo a lenda, quando ele tinha quinze anos, o diretor do seu colégio decidiu escolhê-lo para representar a escola num concurso acadêmico. O tema era composto de uma única palavra: “Jugurta” (rei da Numídia, antiga Argélia). Às nove horas da manhã, o diretor encontra o poeta na sala de aula, absorto, sem que nenhuma palavra ainda escrita. Rimbaud olhou o diretor e reclamou: “Estou com fome”. Um lanche foi trazido até ele e, tão logo ele terminou de comer escreveu seus versos latinos, que, claro, venceram o concurso.
Meio a Guerra Franco-Prussiana, um ano depois, ele foge para Paris à pé. Nessa trajetória, ele escreve os poemas “Au Cabaret Vert” e “Ma Boheme” e envia a Paul Verlaine, dez anos mais velho, o poema “O Barco Ébrio”. A resposta é imediata. Um convite de Verlaine para Rimbaud ir a Paris. E o resultado bombástico: os dois se apaixonaram e construíram uma relação cercada de escândalos e excessos. Era a época em que nossa Paris existia no mundo real e era governada pela imaginação de grandes homens que viriam dar a reviravolta no mundo das artes. Era o lugar onde tudo acontecia. Em seus cafés, teatros, esquinas, tudo dependia do que pensavam os intelectuais que por lá circulavam, que vinham de todos os cantos, falavam todas as línguas, que habitavam uma cidade sempre pronta a receber o inédito, o ousado, o maldito.
Com a benção deste cenário, os dois poetas se entregaram a todo tipo de prova com bebidas e drogas, como absinto, haxixe e ópio, inspirados na ideia de que a criação poética era refém da experiência dolorosa e devastadora, e que só poderia ser obtida através da liturgia do caos, da vivência frenética e alucinatória.
Mas isso tudo não duraria muito. Aos dezenove anos, Rimbaud para de escrever. Coloca a mochila nas costas novamente e viaja por vários países até começar a investir no contrabando de armas. Aos trinta e sete anos já estava liquidado, apodrecido, com dores alucinantes, um cadáver insepulto. Seu corpo exalava os horrores de uma vida sem compaixão com o físico. Morreu em 10 de novembro de 1891 e a obra dele só foi difundida em 1912.
Rimbaud influenciou gerações de autores, compositores, cineastas e artistas. Na lista de Kelly: André Bretón, Henry Miller, Anaïs Nin, William S. Burroughs, Pier Paolo Pasolini, Alejandro De Michele, Hugo Pratt, Pablo Picasso, Mário Cesariny de Vasconcelos, Klaus Kinski, Patti Smith, Luis Alberto Spinetta, Eduardo Sanguinetti, Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov, Bruce Chatwin, Jim Morrison, Cevladé, Mohamed, Bob Dylan, Paulo Leminski, Kurt Cobain e muitos outros.
“Rimbaud era para mim como um poeta demoníaco, um “poeta maldito”, e o gostava de ser… A que estranha danação ele não arrastaria todos os outros? Rimbaud, com seu individualismo exacerbado, sua insubmissão. O selvagem Rimbaud. Ele assusta… mesmo preso! Rimbaud continua um mestre admirável na arte de escrever, um inventor de formas cuja originalidade não foi esgotada por nenhum de seus inúmeros imitadores”. André Gide.
Bom, depois disso tudo, só me resta decretar mais uma data cívica da Paris Imaginária: os 21 dias com Rimbaud, que vai de 20 de outubro (data do seu nascimento) a 10 de novembro. Como já passou, fica para o ano que vem. Daí, penso em fazer uma reunião com Paulinha para ela me detalhar mais essa curtição de punk de caminhão. Vou tirar daí as ideias e depois a gente vê no que dá. Por enquanto, fica só programado ler a biografia dele sugerida no site.
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