27 de setembro de 2010

Do Livro de Manuel

Lendo Papeis Inesperados, do Cortázar descobri essa pérola de história (real*):

“(...) Escute, menina, escute com algo mais que essas orelhas bonitas, você também é as bonecas de Bellmer, tentação e possibilidade da metamorfose pelo amor, da verdade por um prazer capaz de violar redutos, de negar limites à cidade do homem ocidental, um caminho, menina, a rota dos seus seios rosados, as sombras das suas pestanas, o calor dessa boca que chupa o meu pau e morde docemente o sal entre os dedos dos seus pés, o cheiro do seu cabelo (...)”. J.C.

As iniciais H.L.M. da empresa parisiense de construção imobiliária são, aos seus olhos, uma saudação, um grande sorriso que lhe enviam. A megalomania, tão agradável, com o sentimento delicioso de já estar no centro de todos os acontecimentos, surge-lhe como um estado de eleição.

Este excerto, que pertence ao livro autobiográfico “O Homem-Jasmim”, foi escrito pela artista surrealista alemã Unica Zürn. O sentimento expresso nele pela autora, essa sensação “de estar no centro de todos os acontecimentos”, corresponde à vivência que Klaus Conrad descreveu, no seu livro clássico “A esquizofrenia incipiente”, como sendo a experiência nuclear da denominada fase apofánica da esquizofrenia, a anastrofé, “a vivência que tem o doente esquizofrênico de que tudo gira a sua volta”. O texto de Única Zürn é pródigo em transcrições de conceitos psicopatológicos da esquizofrenia, no entanto, o que torna este livro um testemunho único, é o talento que a autora mostra para transformar a vivência do adoecer psicótico num texto poético de rara beleza.

Única Zürn nasceu em Berlim, durante a Primeira Grande Guerra, no bairro residencial de Grunewald, no seio de uma família abastada. A partir de 1931, e ao longo da era nazi, trabalha na UFA, a maior produtora cinematográfica alemã na altura, primeiro como auxiliar de escritório e depois como argumentista de filmes de publicidade.

Em 1942, casa com Erich Laupenmühlen, com quem teve dois filhos (Katrin e Christian). Após a separação, em 1949, perde a custódia dos filhos, e passa a viver como jornalista e escritora, freqüentando os círculos artísticos de Berlim. Para financiar a sua subsistência, escreveu cerca de 140 contos para a imprensa diária berlinesa e diversas peças radiofônicas.


Após a Segunda Guerra Mundial, em 1953, conhece o pintor e fotógrafo surrealista Hans Bellmer (1902-1975), artista inclassificável, famoso como criador de fetiches surrealistas, graças a sua famosa série de bonecas (Poupées). Apaixona-se por ele e, nesse mesmo ano, o casal parte para Paris.

Na cidade das luzes, incitada por Bellmer, Única Zürn começa a desenhar e a escrever anagramas, uma espécie de jogo de palavras, que resulta do rearranjo das letras de uma palavra ou frase para produzir outras palavras. O anagrama foi uma das técnicas usadas pelos surrealistas – como a “escrita automática” ou os “cadáveres esquisitos” – para tentar reduzir ao mínimo o efeito das instâncias de controle e repressão do subconsciente. Se as frases representam o mundo organizado e lógico, então a busca de outras frases numa frase significa a busca de outros mundos atrás do mundo do dia-a-dia. A escrita anagramática, assim como a cabala, tornaram-se para Zürn quase uma obsessão, com as quais se afastava cada vez mais do mundo real. Ela própria descreveu este comportamento. “Prazer inesgotável o de procurar uma frase dentro doutra frase. A concentração e o grande silêncio que este trabalho exige dão-lhe a oportunidade de poder isolar-se completamente do mundo que a rodeia e até de esquecer a realidade – é isso o que ela quer.”

Por intermédio de Bellmer, Zürn conhece os artistas do círculo surrealista parisiense: Man Ray, Marcel Duchamp, Max Ernst, Hans Arp e Henri Michaux. O primeiro deixou-nos dela um famoso retrato fotográfico em escorço. O encontro com Michaux, por quem se diz que esteve apaixonada, será decisivo para a sua obra posterior: ele tornar-se-á, na forma duma relação imaginada e sob as iniciais H.M., no protagonista do livro O Homem-Jasmim.

A relação com Bellmer tinha, sem dúvida, muito na linha do transgressor mito surrealista do amour fou, um componente sadomasoquista, que ela teve a coragem de reconhecer: “O meu destino é ser uma vítima eterna”, escreveu. Bellmer era um grande perverso que, sublimou, como outros artistas, as suas pulsões sádicas através da arte, mas também foi o seu companheiro, o seu principal apoio artístico e emocional e o fiel defensor dos seus direitos quando Única, já muito desequilibrada, demonstrava não ter capacidade para tratar com os marchantes. Única Zürn tinha por ele sentimentos que oscilavam entre a admiração e a submissão. Talvez ela se tenha vingado dele no fim, quando em 19 de Outubro de 1970, se atirou pela janela do apartamento de Bellmer em Paris. Ele, paralisado desde há alguns anos, nada pôde fazer para evitar o desenlace fatal, e não teve outra escolha senão contemplar impotente o gesto dela desde a sua cadeira de rodas. Bellmer morreu em 1974 e foi enterrado ao lado de Única no cemitério do Père-Lachaise, sob uma campa com uma inscrição onde parece ecoar a história de amor além da morte d´O Monte dos Vendavais, romance tão caro para os surrealistas: “o meu amor seguir-te-á até a Eternidade”.


Fonte: http://www.saude-mental.net/pdf/vol11_rev2_leituras.pdf

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